quarta-feira, 2 de abril de 2014

SESSÃO SOLENE PARA REMEMORAR OS FATOS RELACIONADOS AO DIA 31 DE MARÇO DE 1964

DISCURSO PROFERIDO PELA DEPUTADA LUIZA ERUNDINA




*Transcrição do Discurso
Como presidente da Subcomissão Memória, Verdade e Justiça da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, requeri a realização desta Sessão Solene em homenagem aos civis e militares que resistiram ao golpe de 31 de março de 1964 e se opuseram ao regime civil-militar e que, por isso, pagaram com prisão, tortura, exílio, desaparecimento forçado e até com a própria vida.
 
Há exatamente 50 anos, instalou-se no Brasil a mais longa e cruenta ditadura da nossa história, pela força das armas dos militares, com o apoio econômico dos empresários e o respaldo dos Estados Unidos da América que, na época apoiavam os regimes ditatoriais do continente latino-americano, a pretexto da Guerra Fria.

Nosso requerimento teve a acolhida do presidente da Câmara, o Excelentíssimo Senhor deputado Henrique Eduardo Alves, vítima também da ditadura por ter o pai e dois irmãos cassados pelo regime. Concordou, inclusive, em instituir, por Ato Oficial que acaba de assinar, “2014 Ano Nacional da Democracia, da Liberdade e do Direito à Verdade”.
Senhor Presidente, senhoras e senhores parlamentares,
Há meio século, num 1º de abril como hoje, o povo brasileiro foi golpeado nesses três preceitos fundamentais. Perdeu a democracia com a deposição do Presidente Constitucional João Goulart; perdeu a liberdade, tragada pela eliminação das normas democráticas; perdeu o direito à verdade, por imposição de um governo que promoveu e encobriu sequestros, prisões ilegais, torturas e bárbaros assassinatos.
Sob o regime de opressão e violência institucional, os partidos políticos foram extintos, 173 deputados federais foram cassados. Senadores, deputados estaduais, vereadores, governadores, e prefeitos tiveram, igualmente, seus mandatos usurpados e, consequentemente, milhões de brasileiros e brasileiras viram suprimida sua representação política.
Ademais, cidadãos e cidadãs de diferentes classes sociais também sofreram perseguições, prisões, violência. Muitos morreram nas “Casas da Morte” sob tortura ou em situações obscuras; outros tantos permanecem, até hoje, desaparecidos.
Destaque-se, ainda, a violência que se abateu sobre as instituições da sociedade civil que resistiram ao golpe e ao regime de exceção, como os sindicatos de trabalhadores; o movimento estudantil; a Ordem dos Advogados; a Associação Brasileira de Imprensa; organizações religiosas de diferentes denominações; supressão da liberdade de expressão e de organização; além do massacre de índios e de camponeses que lutavam contra a repressão e pela Reforma Agrária.
Relembremos, aqui, o memorável movimento pela Anistia que contou com o protagonismo e a generosa bravura das mulheres brasileiras que pagaram caro pela ousadia de lutarem contra o regime e pela volta ao pais dos brasileiros que estavam no exílio.
Foram essas mulheres guerreiras que mobilizaram e organizaram a sociedade civil para pressionar o governo militar e o Congresso Nacional pela aprovação de uma lei de Anistia, o que só ocorreu em 28 de agosto de 1979, com a provação da Lei 6683/79, ou seja, uma autoanistia, pois beneficia tanto as vítimas como seus algozes, um verdadeiro absurdo jurídico. Assim, permanecem impunes os crimes de lesa humanidade cometidos pelos agentes do Estado, civis e militares, que violaram os direitos humanos e a dignidade dos que lutaram pela liberdade e pela democracia.
É preciso, pois, virar a página desse vergonhoso capítulo da história brasileira, com a urgente aprovação, pelo Congresso Nacional, do Projeto de Lei 573/2011 que aguarda votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania desta Casa.
Referido Projeto de Lei propõe a reinterpretação do parágrafo primeiro, artigo 1º, da Lei de Anistia, sobre os chamados crimes conexos, sem o que não se promoverá a justiça de transição e, consequentemente, o processo de redemocratização permanecerá inacabado. Ressalte-se, inclusive, que o Estado brasileiro está em débito com a Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, por descumprimento de sentença condenatória da referida Corte que obriga o nosso governo a rever a Lei da Anistia em vigor.
Pouco adiantarão atos de repúdio ao golpe militar de 1964, se não vierem acompanhados de ações concretas no sentido de fazer justiça às vítimas da ditadura. Espera-se, portanto, que o Congresso Nacional aprecie e vote o projeto que reinterpreta a Lei da Anistia, a que o mesmo Congresso foi levado a aprovar por pressão do regime que, na época, mantinha, com o poder das armas, o controle do processo político.
Senhor presidente, nobres colegas parlamentares,
Convém lembrar, ainda, que a democracia e a liberdade só foram restauradas vinte um anos após o golpe, com a realização da Constituinte e a promulgação da Carta Magna de 1988.
Já o direito à verdade e o direito à justiça permanecem interditados, por força de uma conspiração silenciosa, porém eficiente, para impedir que venham à luz fatos escabrosos e responsabilidades inescapáveis.
Em 1977, no pronunciamento que, aos olhos da ditadura, justificaria sua cassação, o destemido deputado Alencar Furtado denunciou a existência no Brasil de “filhos órfãos de pais vivos - quem sabe - mortos talvez” e de esposas viúvas “com os maridos vivos, talvez, ou mortos, quem sabe”.
Alencar Furtado e mais 172 deputados cassados, em 2012, numa Sessão Solene semelhante a esta, recuperaram simbolicamente seus mandatos e, assim, a Câmara dos Deputados demonstrava reconhecimento e respeito à soberania do voto popular.
No entanto, os “órfãos do talvez ou do quem sabe” e as “viúvas do quem sabe ou do talvez” continuam esperando a verdade.
Por respeito a estes, aos que foram massacrados e aos que sobreviveram resistindo, não é justo que os mortos sejam esquecidos; que se finja não haver desaparecidos; que se acredite que a tortura não passou de um mero abuso eventual. O pleno esclarecimento desses fatos e a devida punição dos responsáveis por eles é questão de justiça e de respeito à dignidade humana.
Senhor Presidente, colegas parlamentares,
Após esta Sessão Solene, teremos a abertura oficial da Exposição: “Instituições mutiladas, resistência e reconstrução democrática  (1964/2014)”, resultado da dedicação e competência dos servidores e órgãos técnicos da Casa, que num tempo recorde realizaram esse extraordinário trabalho de pesquisa histórica, de planejamento estratégico e de elaboração e execução artísticas. A todos nossa profunda gratidão e, certamente, os aplausos dos que tiverem a oportunidade e o privilégio de visitarem a Exposição.
Gostaria de destacar e de agradecer à direção e ao corpo técnico da TV Câmara pelo trabalho excepcional que realizaram, imortalizando nas imagens e sons dos documentários sobre a repressão política do regime civil-militar e a resistência heroica de pessoas e instituições à violência e ao arbítrio.
Também celebramos a reinstalação, na data de hoje, da Subcomissão Memória, Verdade e Justiça, em reunião da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara, que retomará suas atividades interrompidas compulsoriamente durante o ano de 2012, por razões já conhecidas pela Casa e pela sociedade.
A programação do “Ano Nacional da Democracia, da Liberdade e do Direito à Verdade” compreende outros eventos que se estenderão ao longo do ano de 2014, como a realização de um Ato Político, aqui na Casa, no dia 10 de abril, no hall da Taquigrafia, para marcar as primeiras cassações de deputados federais, num total de quarenta parlamentares de uma só vez e por força de um único ato baixado pela ditadura.
Outro evento será a aprovação, pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (C.C.J.C) da Câmara, provavelmente ainda esta semana, do Projeto de Lei 4903/2012 que inclui o “Dia Internacional do Direito à Verdade” no calendário nacional de datas comemorativas,  a ser celebrado, anualmente, em todo o país, em 24 de março, data do assassinato de Dom Oscar Romero, Arcebispo de El Salvador. Esta é uma iniciativa recomendada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e já adotada por vários países.
Consta ainda da programação um Encontro Nacional de todas as Comissões e Comitês da Memória, Verdade e Justiça do país, no mês de novembro, para analisar o Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (CNV); avaliar os trabalhos desenvolvidos, até agora, pelas Comissões e Comitês; e discutir e definir estratégias para o pós Comissão Nacional da Verdade.
Finalmente, aos que alegam que é preciso virar essa página da nossa história, a resposta é sim. Antes, porém, devemos completá-la com a revelação de toda a verdade sobre as graves violações dos direitos humanos e sobre os crimes de lesa humanidade cometidos pelo regime militar, e os responsáveis por eles, ainda impunes. É preciso que sejam processados e julgados e punidos, como o foram seus opositores.
Assim, o Brasil estará quite com o seu passado; a democracia política estará consolidada e só, então, a página poderá ser virada.
Nossa gratidão a todas e todos cidadãos brasileiros, civis e militares, que resistiram ao arbítrio do regime ditatorial, e aos que seguem lutando pelo direito à memória, à verdade e à Justiça, condição indispensável à construção de uma convivência de paz entre todos os cidadãos e cidadãs brasileiros.
Por fim, nossos agradecimentos ao Presidente Henrique Eduardo Alves, aos senhores líderes e a todos os servidores da Casa por apoiarem e viabilizarem a realização desta sessão histórica, que certamente, marcará a presença da Câmara dos Deputados no reencontro da Nação Brasileira com o seu passado recente, procurando corrigir suas mazelas e reparar as graves violações aos direitos humanos, fazendo justiça às vítimas dessas violações.
Obrigada,
Deputada Luiza Erundina

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